Pouco passava das 7h, de uma manhã de final de Verão. Tomava o meu pequeno almoço, na minha casa, em Abrantes. Junto à janela da cozinha, como é hábito. Poderia dizer que iria ser um dia trabalho como tantos outros. Mesmo que esse dia de trabalho pressuponha uma viagem para um qualquer destino do mundo. Mas não era uma manhã normal. Estava a poucas horas de embarcar para primeira viagem depois do nascimento da Alice, que acabava de completar o primeiro mês de vida. A adrenalina da viagem estava lá, como sempre. Mas tudo o resto, o que estava a sentir, era novo. Existia uma espécie de poder magnético que me impedia de simplesmente só querer ir. E como eu adoro o meu trabalho. Dei voltas e mais voltas dentro de casa. Perguntei umas 20 vezes à Liliana se o que estava a fazer era certo. Eu e a Liliana, temos este poder de ser a consciência certa, um do outro, em momentos de aflição. Ela, em gestos e palavras, passou-me a mensagem de “vai em paz, nos ficamos bem”. Chegou as 10h00 e campainha tocou. Era o meu pai, como habitual, pronto para me ir levar a aeroporto. A despedida foi dolorosa. Parecia que ia partir para a guerra e que iria ficar 5 anos fora de casa. Mas eu sou assim, um eterno romântico. Em tudo. Depois de deixar a cara da Alice vermelha de tantos beijinhos, quase que me tiveram de arrastar dos braços dela. Estava como a música do grande Bonga, “Lágrima no canto do olho”. Beijinho na Liliana e era tempo de partir. Estava a caminho de Malta. Iria ficar por lá 5 dias.
Nunca tinha ido a Malta. Muitas histórias ouvi e li sobre ela. Um conjunto de três ilhas (uma principal (Malta), uma mais pequena (Gozo) e uma não habitada (Comino)), “perdidas” no mar Mediterrâneo, algures entre a Líbia e Itália. Só pela localização, conseguem-se tirar algumas conclusões antecipadas. Influência de culturas distintas e uma localização apetecível em tempos de guerra. Tudo confirmado. A língua é um árabe com sotaque italiano e já passou por várias mãos ao longo da sua história. Sendo o domínio britânico, talvez o que mais laços deixou na ilha. Mas não acertei em todas as “conclusões antecipadas”. Ilha e Mediterrâneo, parecem sinónimos de praia. Na verdade é possível dar uns mergulhos e existem algumas praias, mas Malta é muito mais do que isso. Na parte do “é muito mais do que isso”, existe um nome que se destaca entre os demais. Valletta, a capital de Malta. Classificada como Património Mundial pela UNESCO e distinguida, em 2018, como Capital Europeia da Cultura. Bons indícios para uma viagem carregada de histórias. E assim começo a minha viagem por Malta. Bem-vindos a Valletta.
Estava um dia de céu limpo e uma temperatura agradável. Entrava pelas ruas de Valletta, como quem entra num parque de diversões. Longas fachadas em pedra, edifícios ornamentados, igrejas por toda a parte e muita gente na rua. Turistas e locais. A primeira coisa que me chamou a atenção foi a dimensão cultural. Sente-se um ordenamento britânico, misturado com a “dolce vita” dos países latinos e um toque do exotismo oriental. Nada espampanante, mas deliciosamente alinhado. Sigo a minha viagem, sem pressa e sem nada completamente definido. Estava em modo absorção. Absorção de rotinas e hábitos malteses. Vestindo umas das minhas peles favoritas, ser invisível, mas ver tudo. Sim, num ápice “dispo” essa pele, e desato a falar com toda a gente, vestido uma espécie de disfarce maltês. Entre olhares e pequenas conversas, rapidamente deixei de me sentir um estranho. Estava a milhares de quilómetros de casa, num país que tem uma língua semítica, e sentia-me…bem. Quase que diria em casa, sem estranhar muito o que me envolvia. Estava viver uma espécie de déjà vú. Parecia que não estava a viver as minhas primeiras horas, de sempre, por ali. Parecia que já tinha vivido ali. Mas tal como a diversidade deste local, esta dimensão de sentimentos, não era estranha ao meu corpo e não me sentia assustado com o poder paranormal de poder ter vivido uma outra vida ali (ok, agora pareceu-me estranho). Sentia-me confortável. Continuei viagem num autêntico carrossel de ruas longas e estreitas, cappuccinos e humidade tropical.
Viajava ao sabor do tempo, mas tinha três pontos na mira que não poderia perder. Os Upper Barrakka Gardens, as três cidades e duas obras Caravaggio na St. John´s Cathedral. Começo pelo Caravaggio. Sou um fã assumido deste artista errante, com traços de génio. Desde uma fase da minha vida em queria ser historiador (sim, quero sempre ser muitas coisas). Nessa altura percorri diversos museus e igrejas da velha Europa, quase sempre com a obras de Caravaggio como ponto de busca número um. Desde essa altura que sabia da existência destas obras em solo maltês. Com a agravante de uma estar assinada (coisa inédita) e de estas terem sido, muito provavelmente, as últimas obras deste génio. É claro que toda a minha imagética sobre Malta, colocou, quase sempre, Caravaggio na equação. Nas ruas, nos bares. Imaginava sempre o artista italiano a cambalear e resmungar por ali. Para quem não conhece esta figura controversa do séc. XVI, estava em Malta exilado, numa espécie de última oportunidade, depois de ter sido condenado à morte em Itália por assassínio. Acabou por fugir de Malta (o homem gostava de acção) e morrer a caminho de Roma, com 38 anos. Mas tirando as minhas habituais viagens pelos sonhos, foi com grande emoção presenciei as obras do mestre. Só por isto, a viagem já tinha valido a pena (é claro que assim que cheguei a Portugal, voltei a ler tudo sobre estas obras). A Catedral é lindíssima. Foi hipnotizado que saí daquele lugar. A uma curta distância da Catedral estavam os Upper Barrakka Gardens. O mote da visita continuava a ser o mesmo. Os jardins, no passado, funcionavam como espaço de lazer dos destintos cavaleiros instalados na ilha. Neste jardim, muito mais do que flores, o que mais se destaca é um brilhante terraço com vista para o porto e para as três cidades. Arrisco a dizer que é um dos terraços com a vista mais bonita onde já estive. É mais um viajar na história. E um criar novas histórias. Um lugar incrível. Com uma arquitectura muito ao estilo Guerra do Tronos (uma constante em Malta), é fácil vasculhar a memória deste lugar e imaginar histórias de amor e de guerra, que ao longo dos anos devem ter passado por aqui. Estava tão ligado à criação de histórias, que sentia-me sozinho e em silêncio, num lugar lindo, mas cheio de gente. Este jardim fica num dos topos da cidade, com vista para as três cidades, localizadas no lado oposto do porto. Era esse o próximo destino. Desci dos jardins para o nível do mar e apanhei um barco táxi cheio de estilo. Aqui senti Malta a cruzar-me com o charme italiano de Veneza. A viagem foi curta, mas muito bonita. O porto de Birgu é de filme. Edifícios plantados sobre o mar, barcos de todos os tamanhos e feitios, igrejas e fortes, e o ar da “dolce vita” mediterrânea. O barco “estacionou” num pequeno porto e caminhei para um restaurante de nome italiano. Almocei (pasta com marisco) com vista para tudo aquilo que descrevi e a sonhar com tudo aquilo que tinha vivido. Assim, devagar.
Valletta, esse lugar estranhamente familiar, ficou nas memórias. A viagem por Malta vai continuar.
Autor da crónica: Carlos Bernardo, O meu escritório é lá fora