Se existe experiência icónica para ser vivida na Índia, é fazer uma viagem de comboio. Eu fiz. Para reforçar a coisa, fiz essa viagem à noite, com a duração de 8 horas. Num dos últimos dias da minha viagem pela região de Kerala, fiz a ligação entre Kanhangad e Kochi de comboio. Era inicio de noite quando cheguei à estação local. Enorme e tal como em todos os lados da Índia, com pessoas por todo o lado. Umas deitadas, outras cheias de filhos, outras com animais. Normal. Estava um calor infernal, de colar a roupa ao corpo e de não se estar confortável em lado nenhum. Com cerca de meia hora de atraso lá chega o comboio, literalmente, a perder de vista. Era gigante. Não existe primeira classe ou algo parecido por ali. Existem duas hipóteses ou vais sentado ou vais deitado. Eu tinha bilhete para a hipótese deitado. Cada compartimento tinha 8 camas, num espaço com pouco mais de 9m2. Eu estava a viajar com um grupo de cerca 30 viajantes, de várias nacionalidades. Quase todos ficaram juntos. No meu compartimento, apenas ficou uma viajante ucraniana. O resto, tudo indiano. Primeiro “problema”, para 8 camas, existiam umas 15 pessoas. Ou seja, esta malta compra um bilhete para uma pessoa, e esse bilhete dá também para os filhos e os sobrinhos. Assim que lá cheguei, era a anarquia total. Apesar de todos indianos, poucos falavam a mesma língua e pela confusão com os lugares poucos tinham andado de comboio anteriormente. Resultado provisório, a viajante ucraniana fugiu e eu só me ria. Cumprimentei um a um. Passados 5 minutos já estava sentado no meio deles. Nessa altura percebi que dois, um casal, falava um pouco de inglês. Passados 15 minutos já estava a mostrar fotografias da minha viagem pela Índia. Passados 30 minutos, mesmo os que não falavam inglês já me tratavam pelo nome e já tinham guardado uma cama, com lençóis para mim. Passado uma hora, o filho do casal já era o meu melhor amigo e passava o tempo em cima de mim para brincar com ele. Durante as cerca de 4 horas de viagem sem estar deitado, para dormir, mostrei fotos de Portugal, mostrei fotos da Liliana, falei na Alice, mostrei vídeos do Youtube a mostrar receitas de bacalhau, enfim, deu para quase tudo. Sempre na maior da tranquilidade. Enquanto eu confraternizava com os meus novos amigos indianos, o meu grupo de viagem mantinha-se compacto. No nosso grupo existam também indianos, fotógrafos, guias ou membro do departamento de turismo. De vez em quando lá passavam pelo meu compartimento e riam-se por eu estar feliz e contente no meio daquela algazarra toda. A bem dizer, isto já era procedimento comum meu ou melhor, os indianos em muitas outras situações já tinham procurado conviver comigo, com mais frequência do que com os meus companheiros de outros países. Um fotografo indiano, o Jinson, tinha uma teoria que era por eu ser moreno e ser parecido com os indianos. Numa das passagens pelo compartimento, o Jinson, mais uma vez, riu-se e disse qualquer coisa do tipo “lá estás tu outra vez no meio dos indianos”. Eu ri-me e expliquei ao casal que falava inglês a teoria do Jinson. Ao que a mulher responde com um cara de espanto a olhar para mim e diz: “tu não és nada parecido com os indianos, tu és é muito simpático. E nós gostamos de pessoas simpáticas”. É claro que ia morrendo de orgulho. Antes de deitar, despedi-me de todos, em especial deste casal e do seu filho. Até trocámos e-mails.
Crónica escrita por Carlos Bernardo, O meu escritório é lá fora
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