O exotismo da Índia sempre fez parte dos meus sonhos. Aquele destino longínquo, que marcou a história de Portugal e sempre me fez sentir intrigado com nomes e expressões como “Caminho Marítimo para Índia”, “Descobrimentos”, “Vasco da Gama” ou “Rota das Especiarias”. Intrigado, no sentido da expressão máxima da palavra curiosidade. Curioso por saber mais sobre esse outrora gigante e desconhecido “Novo Mundo”, do qual tanto ouvi falar nos primórdios da minhas aulas de história, e também em livros, filmes ou documentários. Não fugindo a toda a parafernália de património material e imaterial, existente por todo Portugal, directa e indirectamente ligada a essa importante conquista de Vasco da Gama, ao descobrir o caminho marítimo para Índia, em 1497. Uma gigante “auto-estrada” comercial, de elevada importância, que nos permitiu (nós, Portugal) ser uma espécie de “reis do mundo” da altura. Com base nesta informação, que quase nasce com todos os portugueses, como uma espécie de legado intemporal, a minha expectativa perante a partida para uma viagem à Índia, acredito que seja completamente distinta de um viajante da Australia ou da Russia, por exemplo. Existe algo muito forte, a unir a cultura e história portuguesa à cultura e história indiana. Quase como uma espécie de irmãos, filhos do mesmo pai e com mães diferentes, que pouco contactaram entre si. Têm traços em comum, conexões de sangue, mas são completamente diferentes. É assim que sinto a Índia e o seu povo, em relação a mim, enquanto português. Foi isso que senti, quando recebi o convite do Departamento de Turismo de Kerala, no início de Fevereiro, para visitar essa região, bem no sul da Índia, curiosamente o primeiro pedaço de terra que Vasco da Gama pisou em solo indiano. Senti que ia partir para uma espécie de viagem pela minha história, apesar de saber que tudo o que me é familiar ficaria bem distante do que iria encontrar e viver.
Iria começar a minha viagem em Thiruvananthapuram (sim, eu sei. Parece o nome de um antibiótico), cidade também conhecida por Trivandrum. Para facilitar as questões linguísticas. Iria ficar cerca de 20 dias e viajar de sul para norte, com a viagem a terminar em Kochi. No “guião” ou plano de viagem que me entregaram antes da viagem seria uma espécie de “best of” Kerala, o objectivo desta viagem. Raramente iria ficar dois dias no mesmo lugar. Muitas vezes iria partir em busca do mais genuíno que existe por ali, com o pessoal do departamento de turismo a facilitar-me o encontro com as melhores experiências e com as melhores pessoas. A região de Kerala, é da mais pequenas da Índia, o que não a impede de, comparando com a realidade europeia, ser enorme. Tem pouco mais de 600 quilómetros, de norte a sul, e conta com mais 30 milhões de pessoas, como sua população. Sim, muita gente. É quase como imaginar Portugal com 3 vezes mais pessoas. O que, na mesma proporção, implica imaginar as grandes cidades, como Lisboa ou Porto, com 3 vezes mais população. Sim, a Índia é assim. Estas 30 milhões dividem-se em 3 distintas crenças religiosas. Cerca de metade são Hindus, e os restantes são Muçulmanos e Cristãos. Mas confesso que pouco investiguei sobre Kerala antes da partida. Sonhei muito, com aquela imagética da Índia, dos cheiros, das cores, da comida, do clima, mas não queria ter certezas de nada. Queria viver tudo e ser chocado (ou não) com tudo. Talvez movido pela adrenalina da chegada, tudo passou num ápice. Nas primeiras horas da manhã, chegava pela primeira vez à Índia.
O aeroporto de Trivandrum não é pequeno, mas também está longe de ser grande. A uma escala indiana, é pequeno. Saí do avião e encaminhei-me para as autoridades para me carimbarem o passaporte. Um filme. O meu passaporte passou por umas três mãos, que distavam entre si uns bons 100 metros. Só pensava: “estes não gostam do Vasco da Gama, vão me lixar por causa disso e nem o facto de ser do mesmo país que o Cristiano Ronaldo me vai safar”. Só vi todas as outras pessoas a irem embora e eu ali parado, a ver o meu passaporte a circular e ouvir uma língua que, para mim, não passava de sons. Nem percebia quando uma frase acabava. De vez em quando lá perguntava se estava tudo bem e só me abanavam a cabeça. No sentido negativo do movimento “abanar a cabeça”. Mas com cara amigável. Confesso que me estava a sentir confuso, sem, no entanto, me sentir atrapalhado. Assim no meio do nada, e passado uma boa meia hora, lá ouço um barulho. Era o carimbo no meu passaporte, seguido de um “Welcome to India”, com um sorriso de orelha a orelha. Nunca cheguei a perceber o porquê de demorar tanto tempo. Dias mais tarde percebi que o tal “abanar de cabeça”, não queria dizer que não. Queria dizer que estavam a perceber e de acordo com o que estava a dizer. Um movimento de cabeça bastante engraçado e característico do povo de Kerala. Muito me ri depois com os meus amigos indianos, comigo a recordar a situação. Eu perguntava “está tudo bem?”, eles abanavam a cabeça a dizer que não. Eu perguntava “vai ser rápido, tenho gente à minha espera?”, eles abanavam a cabeça a dizer que não. Eu perguntava “falam inglês?”, eles abanavam a cabeça a dizer que não. E depois no final disto, lançam-me um sorriso e um “Welcome do India”, como se nada fosse. É claro que tinha de me sentir confuso. Na verdade foi só um caso real de Lost in Translation.
Poucos minutos depois do barulho do carimbo no meu passaporte, estava na rua, à porta do aeroporto, a suar em bica e com a roupa colada ao corpo. Este é o primeiro impacto real da Índia. Parece que tinha acabo de entrar, com a minha roupa de Primavera vestida, para dentro uma sauna misturada com uma estufa. E depois assistir e sentir o nosso corpo a lutar pela adaptação. À minha espera tinha um batalhão de gente, de sorriso fácil e prontos para me fazer sentir em casa. Entrei dentro de um táxi e parti para aventura. Tal como alguém que está num parque aquático e sobe um bom lanço de escadas e chega ao topo e não existe outra hipótese, é lançar-se escorrega abaixo e sentir as emoções. Foi isso que senti quando entrei no táxi e comecei a percorrer as caóticas ruas de Trivandrum. Tal como no escorrega, pensamos em muita coisa quando vamos a subir as escadas. Boas e más. Eu também as pensei sobre a Índia. Mas depois de começar a escorregar, normalmente as sensações são boas. Eu sinto-me vivo e farto-me de rir. Naquele primeiro táxi também ri muito sozinho. Estava dentro do meu primeiro filme de Bollywood. Tal como eu sonhara. Muito barulho, toda a gente a buzinar, tuk tuks sem regras, muitas pessoas na rua, pessoas diferentes daqueles eu já tinha visto, cores diferentes, cores muito quentes de acordo com o clima que se fazia sentir, os cheiros também muito diferentes. Mas no meio desta confusão toda, só conseguia sorrir. Não era um sorriso atrapalhado e constrangedor. Mas um sorriso sincero, de alguém que está a viver um bom momento. Aquela Índia maluca e exótica dos meus sonhos era verdadeira. Estava confirmado. O que eu não sabia, é que me iria sentir estranhamente confortável com ela. Desde o primeiro momento. Não digo que me senti em casa, porque a Índia é demasiado diferente para conseguir sentir uma coisa dessas. Mas senti-me bem na diferença. Senti prazer em estar noutro mundo. Calculo que o Vasco da Gama tenha extrapolado esse sentimento, no seu primeiro momento de Índia. Também pensei nele, durante o tempo em que estive no táxi. Mais uma vez, com um infinito a separar os elementos em comparação. Mas senti-me pronto para descoberta. Queria ver tudo e conhecer tudo. Sentia que estava apenas no início do percurso. Sentia que iria ver muito e viver muito. O táxi terminou a sua viagem, num hotel de estilo colonial, bem no centro de Trivandrum. É claro que a internet funcionava mal e que dizia que tinha uma bela piscina, quando na verdade não tinha. Mas isto é a Índia e estava radiante por ela ser assim. Disfuncional, caótica e incrivelmente magnética. Já estava preso a ela, de uma forma que não tinha sonhado. Sim, também no hotel todos foram incrivelmente simpáticos. Todos me deram um sincero “Welcome to India”.
Crónica escrita por Carlos Bernardo, O meu escritório é lá fora